Quebrado em dois

Gustavo Empinotti
4 min readDec 1, 2019

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“Isso no seu pé é uma bota de neve?”

Abri a porta e encontrei outros estudantes no lounge do dormitório — para meu desgosto. Teria que ser simpático. Eles estavam construindo gingerbread houses — casinhas de Natal feitas de biscoito. A vaga noção que eu tinha sobre o que era gingerbread vinha do filme do Shrek. Para mim Natal é sinônimo de praia.

Eu estava com roupa de ficar em casa — o moletom personalizado do dormitório, com o nome da residência — Lag — sobre um verde-musgo de péssimo gosto. A calça também de moletom. O ar lá fora estava úmido — tinha chovido mais cedo, e ameaçava de novo — então levava por cima uma jaqueta. E botas de neve.

O inverno da Califórnia pode ser mais rígido que o do Rio de Janeiro, mas não chega a justificar as botas.

A inscrição no moletom abreviava o nome completo, Lagunita. O dormitório ficava ao lado de uma lagoa. Eu calcei as botas para ir caminhar na lagoa: a terra estaria úmida, e qualquer outro sapato afundaria para nunca mais voltar.

Eu calcei as botas porque eu precisava chorar. A lagoa ficava deserta à noite, especialmente nessa época do ano. Seríamos só eu e os guaxinins. A lagoa na verdade é seca; dizem que foi drenada depois que um aluno morreu afogado.

Nessa época eu chorava ouvindo músicas melodramáticas que tinha conhecido na minha aula de espanhol do ensino médio. Chorava com as leituras para o meu requerimento de humanas. Na aula de topologia não chegava a chorar; suprimia enquanto olhava pela janela e ouvia, na distância, o ruído do professor, como uma trilha sonora mal escolhida, divagando sobre variedades que não me interessavam.

Uma variedade

Passados uns meses, o choro passou. Acabou, talvez. Ficou o medo.

O medo, como as variedades, tem várias dimensões. Fazia pouco tempo do episódio da lâmpada na Paulista, que ficou marcado na cabeça de todos os brasileiros — exceto os que não se enxergam no público-alvo. Não que a passagem de 10 anos tenha apagado o medo, ou cessado as lâmpadas. Mas por algum motivo essa parte do medo acostuma rápido. Talvez porque está fora do nosso controle. Como a probabilidade de um avião cair. Você não vai deixar de conhecer o mundo por ela, assim como você não vai deixar de ser quem você é.

Uma segunda dimensão do medo é a da reação de pessoas ao seu redor, que você sabe que não vão quebrar objetos na sua cabeça, mas para além disso não sabe muita coisa. Enquanto eu dava voltas no lago e Malú urrava Blanco y Negro nos meus ouvidos, o rosto que mais rondava a minha cabeça era o do meu pai (uma experiência não muito exclusiva minha). Morar fora nesse período foi uma bênção. Não só pela distância de quem, nessa época, eu temia; mas também porque, afinal, poucos lugares são menos conservadores que um campus de universidade a poucas estações de trem de São Francisco.

Mudar-se para um lugar onde ninguém te conhece é assustador mas também mágico. Te dá a experiência – talvez sem paralelos – de adotar personalidades novas sem a pressão de olhares confusos ou comentários inquisitivos. Lados seus que você próprio desconhece começam a se expressar, como pipocas querendo sair da panela. Talvez você queira deixar o cabelo crescer, talvez você queira vestir aquele jeans branco horrível. Talvez você goste de teatro.

Identidade é algo engraçado. A gente limita a nossa própria liberdade só para não quebrar a consistência da personagem.

A masculinidade inconvincente não foi o único aspecto a despencar da minha personalidade. No ensino médio, eu era olímpico de matemática. Colecionava medalhas, viajava para lugares obscuros para representar o Brasil em competições internacionais. Eu faltava a semanas de aula para participar de treinamentos.

Um aspecto instigante da faculdade americana é que ela te permite explorar diversas áreas (embora às vezes o excesso de escolha seja esmagador). De fato, ela te força. Cursei uma aula obrigatória sobre literatura russa, outra sobre música clássica. O problema é que as aulas a que eu assistia supostamente por obrigação passaram a me cativar mais que as que eu estava supostamente escolhendo. Eu mantinha (e mantenho) o apreço pela exatidão incontestável dos teoremas; mas eu já tinha ouvido falar de Euler e Newton o suficiente. Pushkin e Verdi eram novidade.

Mas eu tinha medo.

Eu tinha medo de tirar as medalhas do peito e não sobrar nada por baixo.

Demorou tanto para eu entender que eu tinha valor intrínseco, independente das minhas conquistas, que eu me segurei ao curso de matemática como a um último fio de vida. Me arrastei como por areia movediça para chegar ao pedaço de papel que confirmaria meu valor como ser humano.

Felizmente, o modelo estadunidense permitia seguir mais de um curso ao mesmo tempo. Acabei escolhendo a ciência política para um segundo pedaço de papel (eu precisava de um outro papel para validar meus novos prazeres).

Eu comecei a ir à psicóloga recentemente. Ela ficou confusa: mas você é mais racional ou mais emocional?

Mas você quer voltar para lá ou não quer?

É um privilégio poder se sentir em casa em dois mundos. Mas, como tudo na vida, é também uma escolha; vem com um preço. Não se sentir inteiramente em casa em lugar nenhum.

Eu ganhei troféus por argumentos expressos em símbolos. Minha prosa em português é formulaica, sincopada; porcamente traduzida.

Meu primeiro amor não falava português. Me chamaram faggot antes de chamar viado.

Hoje, quando eu me enrolo nas cobertas e encaro a parede sem saber em qual mundo ficar, eu lembro da bota de neve. Ela me deu o couro que eu não tinha. Quando me olham confusos e perguntam quando eu vou finalmente decidir o que fazer, o que ser, eu lembro do meu amigo intrigado. Com a bota de neve no inverno californiano.

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Gustavo Empinotti

Passo a maior parte do meu tempo livre lendo, escrevendo e tendo crises existenciais. Formado em ciências políticas e matemática